quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Olhai os lírios do campo.



“Por trás da cortina
além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê, num livro velho,
a sua própria história.”

Manuel de Castro.


Na minha casa, por trás da cortina, além da porta errada, tem um jardim muito agradável. Engraçado como no campos as horas passam devagar, sinto que é proposital, eu odiava tudo relacionado ao campo e agora estou aqui.
Hoje eu arrumava o armário quando me deparei com o meu uniforme de trabalho. Faz 24 anos que não sentia nas mãos aquele tecido bonito, resistente, verde. Resolvi lavá-lo. Enquanto estava na máquina, fui até o baú e peguei um livro velho para passar o tempo, com um silêncio perturbador e totalmente sozinho, comecei a ler.
Aquelas linhas eram recordações íntimas. Lembrei-me de como cresci rápido e forte. Eu era jovem e tinha tudo pra dar certo. Graças aos meus antepassados que -diga-se de passagem- eram poderosos, muitos tinham um certo receio de mim. Apesar de novo, era extremamente inteligente e, por isso, desde cedo fui irresponsável. Quanta imaturidade!
De repente, me vi com 20 anos novamente em meados dos anos 50. Naquela época eu já estava inserido no ramo da política, ainda tímido, só observando. Alguns parentes, em outros tempos e em outros países, já tinham o poder a que eu almejava, porém, ainda não era a minha hora...eu, paciente, esperei. Estava perto de conseguir a glória absoluta: ser presidente do Brasil.
Quando Juscelino deixou o cargo, eu já estava muito ansioso, mas, mesmo assim, Jânio me segurou. Ele não gostava de mim e pra falar a verdade eu o odiava. Essas picuinhas de jovem não respeitar os mais velhos. Ele sabia da minha força e por puro medo resolveu renunciar. Eu deveria ter agradecido o fato dele não ter falado que fui o motivo da renúncia.
Em 1964, Jango desceu do palanque, mas eu esperei um pouco para subir, ainda queria me certificar de que fizera a escolha certa.
Por 20 anos achei que sim, na minha ânsia de conquistar tudo e todos, não escutei ninguém. Tinha muitos amigos e confiei neles, muita ingenuidade da minha parte. Peguei esse lugar como algo a que me pertencia, como esse jardim que vejo na minha frente agora, só que em vez de cuidar desses lírios, simplesmente deixei que cuidassem por mim. Só dava ordens.
Dessa escolha de deixar o vento levar as coisas é que me arrependo. Estava cego e fui distribuindo o meu poder como o tio da padaria que distribui balas de troco.
Recordo-me bem quando Costa e Silva – uma das crianças que pegou as balas – morreu. Ele disse algo assim: “Deixei um presente pra você, use-o bem.”
No entanto, eu não era muito trabalhador e – como sempre – dei o presente para uma outra “criança”. O menino Emílio pegou praticamente todos os meus doces e fez esse presente render. A essa altura eu já estava um pouco cansado, mas, com aquela visão de que ainda reinava. Tinha muita gente contra mim, principalmente os jovens, que escreviam em faixas que eu tinha que sair do poder, paravam na minha janela e jogavam tomates – como se fosse adiantar alguma coisa toda essa revolta. Uma garoto fez uma música e chegou a falar nela que eu inventei o pecado! Imagina, logo eu, que sempre fui tão devoto a família e aos bons costumes...Mandei-o calar a boca e o fiz ficar na Itália até segunda ordem. Um outro homem com voz bonita disse que eu “ensinava a viver sem razão”. Na época achei uma bobagem. A educação nunca esteve tão boa. Mandei-o para um prédio no centro de São Paulo para aprender a não falar mentiras. Se pudesse, pediria desculpas hoje, mas não posso. Ainda bem.
No final de 79, eu já estava velho. Meu irmão Ernesto – que pegou bala até demais- me deixou mal na praça ao pedir tanto dinheiro para os meus desejos. Desejos esses que eu tinha por pura teimosia.
Então, uns 6 anos depois eu já não tinha pra onde ir e mandei fechar minha padaria. Resolvi sair do poder e apenas descansar, ou me arrepender. Toda vez que atravesso a porta errada e saio nesse jardim, penso em como seria se desde o começo eu tivesse entrado na “porta certa”.
Não casei, mas tive filhos de desconhecidas por aí. Coitados daqueles que tem o meu sangue. Eles não tem meu sobrenome, até porque não tive nomes, só apelidos.
Não gosto de ler esses livros, já me lembro muito dessa época quando durmo.
Acho que meu uniforme já está lavado. Vou colocá-lo para secar nesse jardim, cheio de lírios.

Natália Sanches – Junho de 2009.

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