quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A última geração


Corro atrás do vento

Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

Chico Buarque


Era tarde nublada e anunciavam a maior tempestade de todos os tempos.
Eu nunca esquecia meu guarda-chuva, ele sempre esteve  por perto, mas estranhei quando percebi que não o via há tempos.
Era inverno e os dias eram frios, mas não chuvosos.
Apressada, olhei ao redor e não encontrei o guarda-chuva, não quis procurar muito, só pensei: “se chover, é só me abrigar em algum lugar até a chuva passar.”. Lembro-me de ouvir alguém gritar, mas a voz da rua foi mais forte e saí sem olhar pra trás.
A chuva daquela tarde durou 5 meses, 8 dias e 2 horas.
Ela já começou muito forte, aos poucos, perdi minha identidade, meus sapatos, minha voz. Um frio invadiu meu peito e era muito difícil respirar. Os pingos caiam fortes e me cegavam.
Perdida, não sabia voltar pra casa.
Eu olhava pros lados e não via toldos, nem coberturas, as únicas pessoas que conseguiam se proteger da chuva estavam de guarda-chuva. Por incrível que pareça, eles seguravam o vento, a água, os trovões, o caos.
Eu pensava, desesperada: Por que eu não peguei o guarda-chuva? O que me fez ficar atrasada e não querer pegar o guarda-chuva? Eu estaria bem se estivesse de guarda-chuva?
Passei 5 meses, 8 dias e 2 horas longe de casa.
A tempestade continuou fraca, mas aquelas gotas de chuva ainda gelavam a minha nuca e eu não conseguia achar o caminho de volta. Consegui pensar em voltar pra casa quando os pingos fortes recomeçaram e a vontade de voltar pra casa era maior que o medo.
Encontrei a casa intacta, sem um arranhão, bonita como sempre foi.
No entanto, quando abri a porta, ela estava vazia, sem móveis, sem aroma, sem cor alguma. Só achei minha estante de livros e, na parte de cima dela, o meu guarda-chuva.
Como eu não percebi antes? Como eu não olhei para os meus livros, a parte preferida da casa, antes de sair? Ele estava ali o tempo todo, como eu não vi?
Minha raiva era tanta que não saí mais de casa, não abri mais as janelas, não quis saber de nada. O mundo se perdeu com a tempestade e, apesar de estar com o meu guarda-chuva, eu não queria enfrentar aquilo tudo de novo.
As janelas ficavam fechadas e por isso, era sempre noite. Neste tempo, vivia com os meus livros para não me sentir sozinha, porém, em certos momentos, eu olhava para o guarda-chuva e chorava copiosamente. Não me conformava com a falta de atenção daquele dia, com tudo o que veio depois...
Ainda não saí de casa, mas abro todos os dias, um pouquinho, as janelas.
Os móveis voltaram depois de um certo tempo, não durmo mais no chão e sonho tanto que perco a hora de acordar, mas sinto uma tristeza por não sentir que há motivos pra isso.
Toda vez que eu escuto um barulho de trovão, sinto um aperto, um arrepio, falta-me o ar. É como se o guarda-chuva falasse: “Vamos, ta na hora de você lembrar de mim.” E choro, por não saber o que fazer, por não conseguir esquecer.
Às vezes eu penso: O que faz eu não esquecer? Nenhuma tempestade é igual à outra. O mundo que se desfez, eu tava tentando construir de novo com o que me restou: livros, guarda-chuva e esperança. Será que a dor de perder tudo é maior do que a vontade de ter tudo aquilo novamente?
Preciso esperar o dia chegar e abrir as janelas. Preciso voltar a gostar de ouvir barulho de chuva antes de dormir.
Não há o que temer.
É só sair de casa com guarda-chuva
E enfrentar a tempestade.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O mundo e seus moinhos



Eu sempre gostei de caminhar. Quando garanti idade o suficiente para ganhar as ruas, explorei os cantos da cidade com atenção e liberdade. Colocava o tênis nos pés e os fones nos ouvidos e não tinha pressa alguma, até por que não havia um caminho certo para seguir.
No entanto, um dia, numa caminhada corriqueira, senti meus pés cansados, o que era estranho, pois não fazia muito esforço. Meu cadarço desamarrara diversas vezes e ao invés de eu amarrar, por medo de ter que parar e assim, perder algo do meio do caminho, eu deixei … até o momento em que eu pisei no meu próprio pé e cai em um abismo.
Quando levantei, estava numa floresta com árvores bem altas. O sol aparecia tímido entre folhas diferentes e chamativas. Perdi meu tênis e minha música durante a queda, mas era preciso seguir em frente.
A floresta possuía um arome forte, vegetação variada, uma água gelada que eu bebia sem sentir sede, mas que ajudava a encarar os dias com naturalidade como se eu fosse uma velha conhecida. Porém,  eu não conseguia ver o sol e comecei a realmente sentir falta disso, mas não questionava muito e assim, os dias passavam rápido.
No entanto, era de noite que tudo acentuava. A escuridão não perdoava qualquer tipo de fuga. Sem sono e sem medo, comecei a correr assim que não enxergava mais nada. Descalça, corria em um labirinto para obter caminhos, respostas, soluções. Os ensinamentos que antes só habitavam paredes agora faziam parte da minha alma: Viver é perigoso.
Para quem sempre caminhou, correr é um grande desafio, minhas fugas eram fracassadas pelo sono e pela incompreensão. Sentia dores terríveis nos pés, nas costas, no coração. O verde da mata se misturava com o sangue que me escorria e o meu suor era tudo, menos fruto de orgulho.
Até que um dia, eu resolvi parar de correr.
Parei, sentei em uma pedra perto do lago, passei a mão pela água que escorria e comecei a reparar não só nesse meu habitat, mas no sol que eu nunca mais vira nascer. Era verão e anunciavam o fim do mundo, mas a única coisa que acabava ali eram as minhas incertezas. 
Infelizmente, eu tenho esse jeito de aprender as coisas da pior maneira, mas também, depois de aprendida, a lição é permanente, pelo menos dessa vez foi. Quando cai nesse abismo, um mundo novo surgiu na minha frente, mas perdi a base de uma forma tão brusca, que agora o mundo que se abre é dentro de mim.
A dor que eu senti ao parar foi o suficiente para eu voltar a caminhar sem pressa e com objetivo. Ainda não recuperei totalmente a pele que arranquei devido a tantas pedras no caminho, mas o abismo não é mais um lugar desconhecido.
Agora eu conheço cada canto e sei muito bem onde o sol está, pois quando precisei de luz, ele apareceu perto do rio e então eu pude ver o meu reflexo naquele espelho.
Não calcei mais tênis algum, mas também não andei mais descalça, visto meu chinelinho sempre que posso. Não preciso mais correr, apesar de todos os dias sentir as folhas das árvores balançando por causa da mania de fazer desse abismo uma pista amadora de corrida. Prefiro andar devagar e reparar no caminho. Tenho tempo pra isso.
Agora, só caminho descalça quando estou perto do mar.