segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Diabo de passado.




Amanheceu e mais uma vez estou desacreditada de minha falta de coragem. Após ler nos romances aquelas mocinhas bem casadas em suas vidas cor-de-rosa, mais uma vez me deitei sonhadora e estou mais prostituta do que nunca.
Você deve pensar: “O quê? Uma prostituta que sabe ler? E prostituta lá sabe alguma coisa? Tem uma serventia e um destino: dar prazer em uma cama. E só”.
Pois eu digo que sou prostituta e sei ler. Aprecio romance francês, sei quando o filme é bom, sei quando ou jornal é sério porque aprendi a ler aquele que presta, mesmo sabendo que no fundo nenhum é digno o suficiente de leitura assídua.
Por conhecer todo tipo de conversa, das rudes às bêbadas que se dizem apaixonadas, sei também quando devo acreditar ou não. É preciso ver a cicatriz para lembrar o quanto ela doeu e na minha vida de meretriz, cicatriz de “amor” é como a sobremesa do banquete. Resolvi ser o que sou por causa dessas marcas que esticam a pele até estourar. Quando vi, minha coragem de ter futuro brilhante estacionou e com contas à pagar, resolvi seguir a sina.
Você insistiu e eu vou te contar o que eu acho do amor, mas antes eu preciso relatar a minha história. Ah, você quer ouvir? Então, seu pedido é uma ordem.
Eu era menina-moça com os meus 16 anos e ele moço-homem com seus 20 e poucos chegado do cais. Meus olhos bateram naquela pedra e me deixei levar por aquelas espumas brancas em forma de mãos, ele percebeu que a correnteza me puxou e aproveitou para enganar-me com canto de sereia. A vida era tediosa, eu ajudava meu pai de manhã com a pescaria e ia embora para a escola de tarde. Escola de meninas, minha única oportunidade de ser apreciada era no cais...logo no cais.
Desde que o vi, minha razão era encontrá-lo diante daquela paisagem digna de livros baianos. Arrumava-me toda, passava brilho no cabelo, escolhia a roupa mais curta e mais branca para contrastar com minha pele morena e ele me olhava com aqueles olhos de camaleão que mudavam de cor de acordo com meu calor.
Um belo dia, aflito de perceber minhas tantas saias rodadas diante de seu barco, me apontou uma pedra distante em formato de flecha, eu atendi o recado e fui em busca do instrumento perdido para o cupido fazer a parte dele. Lembro-me como ele veio com o rosto assustado: “Você é louca menina?” e eu respondi com uma certeza impossível de se ter aos 16 anos: “Estou apaixonada por você”, “E você sabe lá o que é isso?” “Sonho contigo, quero ficar contigo, você me olha com paixão.” “É certo que você me encanta, mas as coisas não são assim. Vou-me embora daqui uns dias, e aí, menina?” “Vou contigo, nada me prende aqui.”, “Como não? Você parece moça que sabe as letras, que sabe os números, o que vai fazer comigo?”. Depois dessa pergunta, eu resolvi dar um basta e ordenei: “Fica comigo. Pelo menos uma vez.”
Agora, reproduzindo o diálogo, eu vejo como foi inusitado. Percebi que o medo foi embora de suas palavras, pois ele chegou perto de mim e tirou a flor de meus cabelos, colocada para realizar o sonho de alguém arrancá-la de mim. Encostou os lábios no meu rosto como se sentisse o gosto de mar, e devia sentir mesmo. Suas mãos rudes encontraram minhas costas cobertas de suor nervoso e seu peito forte encontrou o meu gelado. Ele me amou como os amantes que eu lia nos livros bonitos. Ninguém nos via, não se ouvia som de mar...e o tempo resolveu descansar, assim como a minha espera.
Acordei com ele do meu lado e com o céu estrelado de verão. Meu irmão dizia que as estrelas tinham nome, desses que a língua já não sabe mais, decidi escolher uma estrela para cada sensação que aquele homem tinha me dado.
Até que ele acordou.
Sua pressa matutina de ir embora era maior do que seu fogo noturno, disse que precisava ir, a pescaria era responsabilidade dele, “acabei dormindo demais!”. Sem pensar no acontecido, me deu um beijo no rosto e disse para eu procurá-lo amanhã, como se ele precisasse dizer.
Ain, me desculpe, você pediu para eu contar de como eu comecei nessa vida...e agora eu to aqui toda chorosa, você não pagou para me ver feia desse jeito...mas uma vez eu li numa poesia que a noite e a bebida fazem a gente ficar igual diabo e aí, querido meu, o diabo é o meu passado...você não se importa, não é mesmo? Provavelmente não quer voltar para casa, pois sua vida não é nada interessante. Pois bem, continuo sem você precisar pedir.
No dia seguinte eu fui até o cais e ele me atendeu com delicadeza, ali eu achei que tudo sido bem verdadeiro, pois ele me encontrava depois do trabalho e fazia questão de me amar muitas e muitas vezes, tudo em um silêncio provocado, já que meu pai não sonhava que os passeios depois do colégio eram para encontrá-lo.
Um dia, ele não me recebeu com beijos nem abraços, disse que a gente precisava conversar e o escambal, anunciou sua partida e calçou seus sapatos. Minhas juras de amor não emocionaram e ele ainda afirmou com toda a sua covardia de homem: “Você se deitou comigo por tentação. Não tem Deus no coração. Achou que eu ia me casar com você? Vou me casar na igreja, com uma mulher que preste.”
Há, você dá risada, não? É, a sina deu certo...fiz da minha vida uma tentação.
A religião do marinheiro me fez puta.
Não sinto raiva dele, sei que eu era criança e que meu amor poderia acabar um dia se eu seguisse viagem, eu só não gostaria de encontrá-lo novamente e sendo prostituta a chance de isso acontecer era bem pequena. Apesar de todo dia achar que ele vai aparecer por essa porta e me falar que o casamento é uma droga.
O que eu penso do amor? Acredito nele. Eu leio bastante sobre essas divagações para saber logo se é ou não o que eu to sentindo. O amor construído, aquele nascimento de mãos dadas eu não conheço muito, me acostumei ao amor dos pés entrelaçados.
O que me deixou mais triste foi o marinheiro achar que meu amor não era puro. Eu o amava com o meu corpo, minha parte terrena e real, o amor concreto e revestido de suores e sussurros. Após o término do amor explodido, me deitava em seu ombro e sentia o tempo se misturar com a brisa calma. Esse meu amor era clássico, apesar de a descrição dele não estar em nenhum livro sagrado.
Ele mesmo disse “você é moça que conhece as Letras” e sei mesmo, sei que existem certas pessoas que não questionam algumas coisas, vivem de uma forma rasa e são felizes, ele era assim. Teve aquela formação comum e com pensamentos limitado, eu já não podia fazer nada.
Cheguei a conclusão de que aquilo foi amor, pois quando falo dele, é um relato longo e os detalhes são bem bonitos, ao contrário dessas minhas histórias cotidianas que duram até o último orgasmo. Você sabe que é assim, né? Não se sinta mal. Você vai voltar para a sua casa, provavelmente passará o sábado com os amigos, no domingo vai para o futebol...e vai me ligar na outra sexta-feira de novo.
Minha fala começou a ficar séria demais, não é mesmo? É que o efeito da bebida já passou faz um tempo, então começamos a escolher um pouco mais as palavras.
Eu devia suspeitar que você ia acabar dormindo depois de tanta baboseira. No fundo, você não quer saber se existe amor ou não, se ele é o sentido da vida ou não, você só queria uma boa história antes de dormir.
Sabe, você é bem bonito quando adormece assim, ainda mais com essa luz que entra pela pequena abertura da janela e faz sua pele ter mais curvas e cor. Uma pena que quando acorda, esse meu encantamento provavelmente vai embora junto com o seu amor de uma noite. Procuro entender que sua gratidão tem preço e não tem amor maior do que você dar dinheiro para a pessoa se alimentar, comprar suas vontades, pagar seu teto.
Depois que meu amor bonito acabou, sinto amor por mim mesma. Quem ama passa por cima de razões e começa a compreender melhor os princípios para poder viver esse “amor”.
Eu faço isso hoje, amo-me como nunca, pois durmo com a vontade de acordar no dia seguinte. Meu amor não é contraditório como as paixões terrenas que despertam dúvidas e delírios e não vou definí-lo como perfeito nem sublime.
Meu amor existe porque é meu. É o meu querer independente, minha falta de ar, meus gemidos, minhas realizações plenas e descansadas.
A vida me fez aprender que o amor, diferente da felicidade, não deve ser compartilhado.