domingo, 11 de janeiro de 2009

Silenciosa Sinfonia



“Quando guardou o violino na caixa e se afastou pelas ruas mortas sem olhar para trás já não achava que ia embora na manhã seguinte, e sim que tinha ido embora há muitos anos com a disposição inabalável de não voltar nunca mais”.

O amor nos tempos do cólera – Gabriel Garcia Márquez


Calor. Muito calor. O sol estava tão quente que os cabelos negros se azularam quando os ponteiros se juntaram no número 12.
Toda vez que a via estava sol. Era como se aquele fogo que vinha dos céus manifestasse o sentimento daquele pobre rapaz apaixonado.
Era um amor inventado, nunca pensou em perguntar o nome da garota ou saber de seus interesses. Só poderia olhá-la, como uma obra de arte recém descoberta.
Por usar somente o olhar, ele aguçou esse sentido, reparou nas mechas que nunca estavam presas com o coque e nas unhas mal cuidadas; percebeu também que seus seios eram grandes, e concluiu que não se tratava de nenhuma mocinha.
Ele trabalhava como ajudante na feira da cidade. Empacotava os repolhos com uma rapidez invejável — seu tato também foi obrigado a ser treinado.
Um dia ela resolveu comprar repolhos.
“E agora?” Pensou o rapaz. “Ela não pode me ver. Se ver, é bem capaz que fale comigo... Ela não vai me entender”.
A torcida foi em vão, a mulher foi até a barraca e comprou repolhos.
Seus olhares se cruzaram uma ou duas vezes, o menino fingiu estar ocupado, mas não pode deixar de reparar no sorriso. Parecia uma onda que, ao chegar nos olhos do garoto, se desmanchava.
Após aquele dia, o garoto passou a segui-la. Sentia-se um criminoso assim; ele não tinha o direito de invadir a vida da garota, descobrir onde morava, essas coisas. Sabia que se fosse uma vez à casa dela, iria sempre. Começou assim na feira: antes era um consumidor de maçãs, bananas, repolhos; ao perceber que ela ia diariamente, resolveu arrumar um emprego para vê-la todos os dias.
Ela morava num sobrado azul, perto da feira, numa rua tranqüila durante o dia, quem dirá à noite. Um bairro nobre com pinheirinhos na frente de cada residência. Como já estava no fim da tarde, os raios cor-de-rosa faziam seus cabelos brilharem ainda mais. Sua casa estava agitada, tinha três carros na garagem. Ela entrou na casa, e arrebatada por uma maré de surpresa, seu sorriso litorâneo se alargou e seus olhos ficaram pequeninos. Recebeu o abraço de um homem alto e com mãos velhas, vestido todo de branco. O menino se sentiu um intruso e achou melhor não olhar a festa da família, até porque percebeu que era uma comemoração. Foi embora com as mãos para trás. Não tinha nada para festejar.
Na manhã seguinte, ela apareceu na feira novamente, mas dessa vez algo estava incomum em seu corpo. Ele sempre reparava nela inteirinha quando colocava os pés na feira. Levava os sete mares no sorriso. O garoto estava com medo de tanta felicidade e resolveu usar a pouca coragem que restava; ao olhar a mão direita da moça reparou a aliança dourada, dessas que ele só via quando fazia entregas nos restaurantes chiques da cidade.
Fazia sol naquela manhã, como em todas as outras, mas pela primeira vez o garoto sentiu um frio estranho e até sua visão que nunca o deixou na mão falhou, pois o mar que saía de seus olhos era violento. Era duro aceitar que esse dia chegaria, a menina não sabia da existência daquele sentimento, era livre para escolher o partido que quisesse, ele era apenas o menino de cabelos muito negros que vivia calado, empacotando os repolhos. Um Odisseu covarde que não teve coragem de romper as cordas da garganta para acompanhar sua sereia.
Voltou para casa já sem esperanças, poderia escrever para ela, mas ela não acreditaria, poderia ir até a casa dela fingir uma entrega e tentar demonstrar que ela não era apenas uma cliente, mas esta também não era uma boa idéia. Sentou no chão da sala humilde e olhou a coleção velha de discos da mãe, lembrou de quando ele ainda era um garoto e podia escutá-los até tarde. Pegou um dos discos e olhou com um quê de descoberta.
Pegou o violino já um pouco velho na estante e seguiu para a rua da moça.
Estava uma noite calma, sentiu o silêncio e o olhar da Lua, grande e pensativo. Ela era cúmplice de que tudo o que ele estava fazendo, era somente por amor. Sabia que ao tocar aquele instrumento, todas as lembranças de um passado feliz e que não volta iam torturá-lo. A Lua o ajudou a passar por cima do que foi para conquistar o que poderia vir.
Encostou o violino no pescoço e começou a tocar. Estava escondido, não queria que ela o visse!
Ele sabia que a música ecoava pelo asfalto, sentia a vibração de cada nota apaixonada, olhava para a sacada com a certeza de que ela apareceria para ouvir aquela música que ele tocava para ela, só para ela.
Ela saiu na sacada, radiante; usava uma tiara azul, da cor do mar! Era como se ela adivinhasse que ele estava ali, era a última chance de ele dizer através da música o quanto a amava...
A música foi interrompida por um ronco de motor que se encostava ao portão.
Ele viu no olhar da moça a animação, mas mesmo assim não parou de tocar.
Olhou seus lábios falarem algo como “Linda a música, não? Não sei de onde vem...” e o homem que a pegara nos braços respondeu: “Se você quiser, um dia toco para você”.
O menino não queria, mas não sentiu mais força nos braços e parou de tocar. A única forma de ele demonstrar o que se passava no seu coração com uma melodia impecável, o jeito mais bonito de falar que tudo o que ele sentia era verdadeiro e que só não disse antes por que era fisicamente impossível, foi interrompido por um ruído asqueroso e insensível.
Ele sabia que ela casaria com um homem bom, que sempre estaria ali com as palavras certas para confortá-la se fosse preciso.
Foi infantil da sua parte pensar que ela não o amaria, mas mesmo assim não arriscou, preferiu não falar de outras formas.
No dia seguinte não teve feira.
Estava chovendo.