quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Emergência.


Quando o vidro é sujo
pelas baforadas inquietas
de uma pobreza piedosa,
os olhos abertos
recebem os tapas reais.
A vontade é escutar a história
de cada foto 3X4 encardida.
No poeta,
falta oxigênio na alma.
No povo,
no corpo.
E eu
que achava verdades ruins nas esquinas,
vivo em um aquário
que mostra a certeza
das pequenas aflições.
E, apesar de tudo,
acredito em milagres
ao ver sorrisos vazios.

domingo, 19 de outubro de 2008

Doença curada.


Quando recebeu aquele cartão meio pequeno, J. achou tão bonito.
Até que ficara bem na foto. Só não gostou de uma coisa: Era preto e branco e não dava para ver que os olhos eram verdes.
A mulher bonita do balcão usou um carimbo no espaço vazio perto da foto.
"NÃO ALFABETIZADA"
J. não entendeu o motivo do carimbo, mas não importava, ela estava feliz por mostrar que era "oficialmente" alguém.
Casou-se com 16 anos e 11 meses, quase 17.
Queria casar no dia do seu aniversário, mas sua mãe não deixou, casar com 17 anos já era tarde.
Teve 10 filhos, 8 meninas e 2 meninos. Foi bom ter várias meninas, J. tinha um problema sério de asma, precisava de ajuda nos afazeres domésticos.
54 anos depois de receber a identidade, ela marcou uma consulta no hospital público da capital, precisava urgentemente de um pneumologista.
13 horas ela estava na frente do ambulatório.
- Tenho consulta marcada - Ela tinha uma voz rouca, os olhos bem abertos.
Entregou o papel para a menina que estava no balcão.
- Tem a sua identidade, senhora? - A menina disse olhando para o papel amarelo que já fazia parte da rotina.
J. entregou a identidade.
A menina estudava para ser professora de Português, estava no começo da faculdade, um pouco insegura para saber qual o real significado da palavra "educação", apesar de ser tímida, gostava da idéia de poder ensinar, mesmo tendo como alunos só os bonecos na época da infância.
Ela olhou as letras pequenas que representavam um grande problema.
E escreveu o nome "J." em um papel branco e entregou o amarelo à senhora.
- É só esperar no corredor aqui do lado.
2 horas depois, J. passou pelo ambulatório correndo, ia perder o horário da van.
A menina do ambulatório a viu e saiu correndo.
-Senhora! Senhora! Olha só, escrevi o nome da senhora nesse papel. Essa semana, vá fazer uma nova identidade e copie o que está nesse papel na parte que tem um espaço em branco, perto da foto. É o seu nome, sua assinatura.
J. não entendeu muita coisa, não queria uma nova identidade, gostava da sua "atual", da sua foto.
Era uma lembrança da juventude.
- Faça isso - a menina reforçou - a senhora saberá escrever seu nome! Não é bom? Daqui há 1 mês, quando a senhora retornar para uma nova consulta, quero ver uma nova identidade, hein?
E saiu correndo, o movimento do ambulatório era grande naquela época, começo de inverno.
J. fez o que a menina mandou.
Comprou um caderno e um lápis, seu marido estranhou, seus filhos também, ninguém sabia ao certo o que a mãe queria com aqueles materiais.
Nunca precisou de nada daquilo.
Mesmo assim, decidiu tentar.
Se não conseguisse, tudo bem, sua felicidade nunca dependeu do fato de ela saber ou não a ler e escrever.
1 mês depois ela voltou para o hospital, mas a menina do balcão tinha mudado.
O mesmo processo de sempre, entregar o papel amarelo, pedir a identidade e mandar esperar.
Nenhuma observação ou estranheza a respeito do novo cartão.
Antes, olhavam batante para a sua carteira de identidade, ela sempre imaginava que era por causa da foto e se sentia bonita.
J. achou que, sabendo assinar seu nome, poderia se diferenciar das pessoas, chamar a atenção.
Voltou para a casa pensando na menina professora, de como queria encontrá-la, mostrar que realmente aprendeu, ela ia ser a única que ia reconhecer o tamanho do esforço que ela teve para poder desenhar aquelas letras.
Pensou em tudo isso
e chorou ao olhar a foto velha...

domingo, 12 de outubro de 2008

Feliz cidade.



No começo,
você me chamou de medrosa,
disse que minhas lágrimas
não molhariam nem o meio fio da calçada.
Eu, pequena,
preferi aceitar suas ordens.
Até que resolvi encarar
suas feições duras.
E te agradeço por não ter
me deixado aparecer antes.
Você preparou o cenário,
a música,
o tempo.
Sem perceber,
eu tinha uma história.
Eu gosto de te olhar,
de respirar você.
Você me deu um amor de presente.
Sempre que vou,
sempre que volto,
a garoa
sai dos meus olhos.